Quando eu era uma jovem pastora no Estado do Espírito Santo, no empobrecido bairro de São Conrado, era comum aos domingos ir a pé para a igreja, com a chave de casa enfiada entre os dedos, porque as mulheres eram sempre ameaçadas. Ou de estupro se usassem a passarela à noite, ou de atropelamento, se arriscassem atravessar quatro pistas da Rodovia do Sol.
Frequentemente um homem da igreja me acompanhava de volta para casa, pois meu marido estava em outra igreja, a 70km de distância. Depois do culto eu costumava esperar mais de uma hora pela chegada dele. Nas dificuldades daquele tempo, tínhamos uma moto pequena, que eu temia sofrer algum assalto ou acidente. Quase sempre estava ansiosa nas orações, quando ouvia o som do motor na porta, era quase como um coral de anjos...
Na igreja havia muitas crianças e adolescentes. Peguei piolho umas duas ou três vezes no processo inevitável da acolhida, do abraço e do colo. Naqueles dias, o número de homicídios em Vitória era de 48 por dia, enquanto no Rio de Janeiro eram 24. Um jovem juiz foi morto por outro velho juiz. Um vereador foi baleado poucos minutos depois que eu passei pela praça central de Vila Velha. Vi corpos ensanguentados duas ou três vezes quando chegava de viagem na rodoviária de Vitória.
Quando as coisas ficavam mais feias no Rio de Janeiro, os bandidos desciam para aquele limbo que era a empobrecida região que eu pastoreava. O medo aumentava, a chave voltava a ficar entre os dedos, como arma improvisada. O coração acelerado a caminho da igreja, o esforço por manter a criançada com esperança.
Projetos, festa, contadores de história, lanchinho... há pouco tempo recebi a notícia de que um dos meninos que morava naquele bairro, cuja avó, pessoa maravilhosa, membro da igreja, trabalhou na minha casa como faxineira, passou na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Baita alegria em meio a uma vida dura, cheia de gente batalhadora, mas sem expectativas.
O ES é um dos estados mais violentos do Brasil, mas não entra na mídia como o Rio de Janeiro. Por isso me entristeço profundamente com intervenções. Elas significam que o cotidiano está em colapso, que algo está muito errado. Não importa se existem outras motivações para esse ato, o que importa é que a intervenção aponta uma falência. Ela não vai desaparecer quando a intervenção for suspensa. Ela tem que ser corrigida.
Ouvi dizer que as igrejas criticam muito e pouco fazem.
Como pastora de periferia, eu fiz:
Denunciei violência doméstica, amparei uma mulher e enfrentei seu marido, que me fazia ameaças.
Segurei crianças no colo, assegurei-lhes o amor de Deus.
Incentivei mulheres a estudar.
Anunciei o Evangelho.
É pouco, mas é semente.
Conto isso para você saber que seu pouco faz toda a diferença. Que a gente tem que insistir, porque embora neste mundo tenhamos aflições, ele é um mundo do qual disse Deus no começo que era bom. Deus não desistiu dele.
Deus não escolheu o discurso do ódio, mas em Cristo proclamou resgate e libertação. Sempre terei as melhores lembranças dos anos difíceis de pastorear São Conrado. Lembranças de vida e de transformação:
Da mulher vitimada que me ligou alguns anos depois para dizer que estava terminando a faculdade.
Do menino universitário.
Da pequena empresária que cresceu.
Não é mérito meu nenhuma dessas conquistas. Mas me alegro por estar no roteiro dessas histórias.
Lamento a intervenção governamental, mas incentivo a intervenção pessoal. Parece pouco, mas sempre dá bom resultado. E se é fruto do amor, não tem agenda escondida. Seu interesse é mesmo o ser humano, a quem Deus amou em Cristo desde o princípio.
Extraído com permissão do Facebook da Bispa Hideíde
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